A tal da memória curta...
Leitura que demorou alguns meses para ser concluída, não por falta de vontade, mas é que no meio da bagunça narrada nos últimos posts faltou tempo para ler. Antes de iniciar a leitura sabia pouco sobre Carmen Miranda (mas arrisco dizer que não menos que as pessoas em geral sabem!). Sabia que ela tem uma música chamada "Mamãe, eu quero", que ela fazia performances com um cacho de bananas na cabeça, com roupas chamativas. Ah, que tinha algumas marchinhas de carnaval. Só.
Ruy Castro é ótimo escritor e me pareceu ser um biógrafo dos mais respeitáveis e com credibilidade. Ele soube, como em poucas biografias que li, contextualizar lugares, diferentes momentos da história, expressões locais e gírias. E fez um trabalho único, de grande favor para a cultura brasileira. O resultado de sua pesquisa foram 632 páginas sobre a vida da biografada. 632 páginas! De uma mulher que a grande maioria dos brasileiros conseguem, se muito, escrever 3 linhas.
Essa leitura me despertou muitas reflexões, mas em especial a questão da "memória curta do Brasil". Termo mais comumente usado quando falamos em política, mas são muitos casos culturais também.
Carmen Miranda foi uma das maiores cantoras brasileiras em sua época, num tempo em que ainda nem se lançavam LP's, as músicas eram lançadas direto nas rádios. Mais tarde participou de filmes brasileiros de baixíssimo orçamento, alguns inclusive, não fosse por relatos, nem se saberia que existiram, uma vez que seus originais se perderam com o tempo. O sucesso era tal que seus concertos eram sempre lotados, nas madrugadas cariocas. E quando algum estrangeiro visitava a cidade era ponto garantido que seus anfitriões os levavam. Numa dessas um empresário americano compareceu à um club que Carmen estava se apresentando. Foi amor à primeira vista. Depois de alguns dias de negociação Carmen se mudou de mala e cuíca para os Estados Unidos.
Lá iniciou uma promissora carreira em teatros, mais tarde indo aos cinemas -- também cantando por lá suas músicas em português. Já com a carreira estabelecida Carmen chegou a ter o maior salário pago a uma mulher em solo americano.
Infelizmente todo esse sucesso era devido à personagem e não à mulher. Nas décadas em que morou lá e atuou, Carmen sempre teve que encenar a mulher latina -- não necessariamente brasileira, por vezes a mexicana ou a cubana eram mais vendáveis --, exagerada, chamativa. Fazia em média 3 shows por noite, em diferentes clubes e cabarés. Para conseguir dar conta começou a tomar remédios para dormir, e por consequência também para acordar. Isso em uma época que essas drogas legais ainda eram estudas e seus riscos eram desconhecidos.
Nesse ponto é possível fazer uma ponte entre Carmen e Marylin Monroe. Ambas sonhavam em se casar (uma se casou e a outra não, mas ambas viveram relacionamentos de fachada), sonhavam em ter filhos (nenhuma teve), e sonhavam em largar tudo para serem donas de casa exemplares (infelizmente não tiveram tempo). Quanto à realidade, ambas eram estereotipadas (Marylin sempre era vista como a loira-burra-gostosa), foram por determinado momento a pupila de seus respectivos estúdios cinematográficos, e eram viciadas em medicações calmantes e estimulantes (mesmo não tendo consciência disso, e achassem que a medicação apenas as ajudava).
Quando da sua última visita ao Brasil, haviam se passado 14 anos que Carmen não pisava em solo brasileiro. Ficou aqui por 4 meses, mais em reabilitação do que aproveitando seu povo e cidade. 2 meses após seu regresso nos Estados Unidos morreu em sua casa, aos 46 anos de idade, vítima de infarto. Não pode realizar sua vontade de aproveitar mais um carnaval brasileiro, incógnita entre a multidão. E seu plano de eventualmente voltar a morar aqui também não pode chegar a ser considerado seriamente.
Seu enterro foi no Rio de Janeiro, uma semana depois do ocorrido. Causou grande comoção e alguns videos de matérias da época estão disponíveis na internet (assim como muitas apresentações, entre elas sua última, gravada algumas horas antes de sua morte).
Causa indignação fazer uma rápida busca e constatar que há pouco, ou quase nada, de Carmen disponível à venda no Brasil. Uns poucos filmes, uma ou outra coletânea com no máximo 16 músicas. Pouco para quem tem mais de 300 registros. Nas lojas norte-americanas há mais fartura disponível. Irônico e envergonhador.
Li por aí que Pedro Almodóvar já manifestou interesse em fazer um filme sobre a vida de Carmen, baseado nessa biografia, mas foi impedido porque os direitos atualmente pertencem a Rede Globo, que os comprou com o intuito de fazer uma mini-série. Nada foi feito ou planejado ainda.
É triste ter que admitir a memória curta de nossa pátria, e mais ainda a ignorância geral em volta dessa artista. Torço muito para que nos anos vindouros sejam disponibilizados mais filmes, músicas e divulgação em cima de sua história. Merecemos e devemos saber mais sobre Carmen Miranda. Vida longa!
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